Consolidação das Leis do Trabalho faz 70 anos com 18,6 milhões na ilegalidade

De toda a m�o de obra do pa�s, 20% ainda n�o t�m carteira assinada. Brasil tem atualmente 1.700 regras,entre leis, portarias, normas e s�mulas trabalhistas.

No quarto de Get�lio Vargas, o aposentado Ant�nio Souza mostra sua carteira de trabalho, de 1959 Fabio Rossi

A Consolida��o das Leis do Trabalho (CLT) chega aos 70 anos no pr�ximo dia 1� de maio com o desafio da formaliza��o. Mesmo com a carteira de trabalho obrigat�ria desde 1932, 20% de toda a m�o de obra do pa�s ainda n�o t�m carteira assinada, o que representa 18,6 milh�es de admitidos ilegalmente e que, portanto, n�o s�o atingidos pelos direitos da lei. E h� ainda 15,2 milh�es de trabalhadores por conta pr�pria sem qualquer prote��o, por n�o contribu�rem para a Previd�ncia Social. O mercado de trabalho e a legisla��o do pa�s s�o o tema da s�rie de reportagens que O GLOBO inicia hoje.

Nascida com 922 artigos, n�mero que se mant�m at� hoje, o conjunto de leis � objeto de caloroso debate entre economistas e juristas: menos regula��o aumentar� ou n�o a formalidade no mercado de trabalho? E os 70 anos da CLT chegam quando o mercado de trabalho passa por um dos melhores momentos. A taxa de desemprego nunca esteve t�o baixa, em 5,5% em 2012, os sal�rios continuam subindo mesmo com a infla��o crescente e os empres�rios reclamam de falta de m�o de obra. A quantidade de normas � s�o mais de 1.700 regras, entre leis, portarias, normas e s�mulas trabalhistas vigentes no pa�s � tamb�m � alvo de cr�ticas e defesas.

Nascida em 1943, na ditadura do Estado Novo, sob o dom�nio do presidente Get�lio Vargas, a CLT reuniu a legisla��o existente na �poca. Segundo o professor de Hist�ria Econ�mica da UFRJ F�bio de S� Earp, Get�lio busca o apoio dos trabalhadores num momento de exce��o. O Brasil come�a a mudar de economia agr�ria para industrial, de rural para urbana. Era necess�rio regular o trabalho urbano. As leis reunidas nasceram antes, nos anos 30 e in�cio de 40, como sal�rio m�nimo e exig�ncia de carteira. Mas a CLT trouxe um cap�tulo novo inteiro sobre remunera��o, altera��o, suspens�o e interrup��o do contrato de trabalho. Arnaldo S�ssekind, um dos integrantes da comiss�o que montou a CLT, disse em livro escrito em 2004 que a CLT cumprira �importante miss�o educativa, a par de ter gerado o clima prop�cio � industrializa��o do pa�s, sem conflitos trabalhistas violentos�.

Capacidade de formalizar: sem consenso

Setenta anos depois, n�o h� consenso entre especialistas se menos regula��o impulsionaria o emprego formal. Ex-ministro do Trabalho de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 1999 e hoje economista da G�vea Investimentos, Edward Amadeo diz que boa parte da informalidade vem do custo e da complexidade da legisla��o. Na sua gest�o, foram institu�dos o contrato tempor�rio e banco de horas.

� Evidentemente h� uma enormidade de pequenas empresas que n�o t�m condi��es de arcar com o custo ou a complexidade da legisla��o. O Simples foi uma das coisas que mais diminuiu a informalidade, ao facilitar o pagamento de impostos, e o mesmo ocorreria com a reforma trabalhista.

O soci�logo Adalberto Cardoso, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Pol�ticos da Uerj, especializado em rela��es de trabalho, afirma que a informalidade existe por n�o haver emprego formal para todos. Como o seguro-desemprego ainda � limitado no Brasil (pago por at� cinco meses), o trabalhador recorre a atividades informais para sobreviver.

� N�o tem emprego formal para todo mundo. Pequenas empresas que t�m funcion�rios n�o produzem riqueza suficiente para o pagamento de impostos, e n�o s� os trabalhistas. N�o t�m condi��es econ�micas para fazer frente ao mundo da formalidade. O mercado de trabalho brasileiro � o mais flex�vel do mundo, o empregador pode alocar a m�o de obra como quiser.

Com ou sem reforma, a CLT afinal foi ou n�o boa para o mercado de trabalho? Estudioso de rela��es sindicais e de trabalho, Jo�o Guilherme Vargas Neto, tamb�m consultor da For�a Sindical, � taxativo:

� A CLT � a v�rtebra da estrutura social, pol�tica e econ�mica do Brasil. Sem a CLT, a sociedade teria se dissolvido.

Para o economista Lauro Ramos, do Ipea, a CLT � anacr�nica e, no af� de garantir direitos, acabou criando barreiras:

� Em nenhum pa�s do mundo tem carteira de trabalho, s�mbolo do legal e do ilegal. De quem cumpre ou n�o a lei.

Mesmo sem reforma ampla, a CLT vem sendo mudada a conta-gotas nas �ltimas d�cadas. O conjunto de artigos j� sofreu 497 modifica��es desde 1943, al�m das 67 disposi��es constitucionais de 1988 que se somaram � CLT. Desde a Constitui��o de 88 j� foram propostas 255 a��es no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade de regras trabalhistas, conforme levantamento do Grupo de Pesquisa Configura��es Institucionais e Rela��es de Trabalho da UFRJ.

� A CLT foi alterada muitas vezes, a conta-gotas. Tem muitos artigos, alguns discut�veis, outros que acredito que j� foram revogados. � preciso uma limpeza, uma grande revis�o. Isso � urgente e relevante para acabar com as d�vidas � afirma Sergio Pinto Martins, professor de Direito da USP e desembargador do TRT/SP.

O detalhamento da CLT tamb�m � motivo de debate. S�o 922 artigos da Consolida��o das Leis do Trabalho, 295 s�mulas e 119 orienta��es (precedentes normativos) do Tribunal Superior do Trabalho, 193 artigos do C�digo Civil, 145 s�mulas do Supremo Tribunal Federal e 67 dispositivos constitucionais, de acordo com o soci�logo Jos� Pastore. H� quem considere que o Brasil � um dos pa�ses com mais normas trabalhistas do mundo, enquanto outros argumentam que na��es como Fran�a e Portugal t�m legisla��es trabalhistas t�o ou mais detalhistas que a nossa e que a sociedade hoje � complexa e exige tal detalhamento.

�No topo da lista de pa�ses com mais normas�

O professor da Faculdade de Economia e Administra��o da USP H�lio Zylberstajn diz que o Brasil est� �no topo da lista dos pa�ses com mais normas�. �� uma quantidade absurda�. J� �ngela Castro Gomes, professora da UFF e coordenadora do CPDOC da FGV, lembra que todo o direito brasileiro � detalhista.
Com tr�s carteiras de trabalho (1959, 1975 e 1985), o aposentado Ant�nio Sousa, de 73 anos, teve a carteira assinada em 1959 como servente.

� A pessoa tinha que trabalhar dez, 14 horas. J� virei in�meras noites trabalhando. E f�rias n�o existiam. S� em 1963 que isso come�ou, mas eram 20 dias. Se hoje o filho do oper�rio estuda na universidade � porque o emprego do pai d� garantia.

Com Lula e Dilma, reforma � engavetada

O melhor momento do mercado de trabalho nas �ltimas d�cadas tirou do foco a discuss�o sobre a necessidade de reformar a CLT. Com o emprego crescendo � a ponto de termos a menor taxa de desemprego dos �ltimos dez anos, 5,5% na m�dia de 2012 em seis regi�es metropolitanas e que continua em queda este ano � o tema perdeu lugar na agenda econ�mica para a discuss�o sobre log�stica e infraestrutura do pa�s, segundo especialistas.

A troca de governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando foram institu�das formas mais flex�veis de contrata��o, como contrato tempor�rio, e de jornada, com a ado��o de banco de horas, para o do petista Luiz In�cio Lula da Silva, tamb�m fez mudar a import�ncia do tema.

� O que tinha de acontecer de reforma trabalhista j� aconteceu. O Brasil crescendo com formaliza��o e outra ideologia mudaram o debate � afirma o soci�logo Adalberto Cardoso.

No in�cio de seu governo, em 2003, Lula promoveu um f�rum nacional para debater a reforma trabalhista, uma promessa de campanha que foi reiterada quando j� estava na Presid�ncia. As discuss�es come�aram pela reforma sindical, mas o assunto morreu na praia. A falta de consenso era tanta que nem chegou a se transformar numa proposta de mudan�a, diz Cardoso. E a promessa de campanha ficou para tr�s, nos dez anos do PT no poder.

No governo de Dilma Rousseff, essa hip�tese ficou enterrada de vez. Sindicalistas presentes a reuni�o com a presidente disseram que ela foi enf�tica ao negar qualquer reforma. Segundo eles, Dilma declarou em mar�o de 2012:

� No meu governo n�o vai ter reforma trabalhista. Nenhum ministro est� autorizado a falar sobre isso ou propor qualquer coisa nesse sentido.

Segundo o professor da Unicamp Claudio Dedecca, o tema est� fora da agenda pol�tica. Para Edward Amadeo, a forte gera��o de emprego nos �ltimos anos fez a reforma perder apelo. Ele alerta que a reforma n�o � s� para criar emprego, mas tamb�m produtividade.

� O maior problema do Brasil hoje � o baixo crescimento da produtividade. Se tiv�ssemos feito a reforma h� dez anos, a situa��o seria diferente � diz.

Por C�ssia Almeida e Lucianne Carneiro - O Globo