
O economista Bernard Appy, que foi secret�rio-executivo do Minist�rio da Fazenda
Autor da mais recente --e n�o implantada-- proposta de reforma tribut�ria, o economista Bernard Appy v� nova chance de governo federal e Estados enfrentarem o problema em nome da nov�ssima agenda do pa�s: o resgate da competitividade.
Em 2008 e 2009, Appy elaborou um proposta que continha desonera��o da folha de pagamentos, reforma do ICMS (Imposto sobre Circula��o de Mercadorias e Servi�os) e unifica��o dos sistemas de cobran�a do PIS/Cofins para um �nico imposto, n�o cumulativo (que n�o � pago mais de uma vez na cadeia produtiva).
Enfrentou resist�ncias e a reforma n�o vingou. Hoje, o governo emite sinais de que pretende retomar parte da agenda perdida para impulsionar a economia.
Appy prev� resist�ncias, mas defende que s� a mudan�a do PIS/Cofins poderia aumentar o crescimento da economia, nos pr�ximos cinco anos, em 0,5 ponto percentual por ano --um ter�o do crescimento da economia previsto para este ano (1,5%).
Se, numa tacada, o governo fizesse a reforma do PIS/Cofins, do ICMS e ampliasse a desonera��o da folha de pagamentos para todos os setores, o impacto, calcula Appy, seria um PIB 10% maior em um prazo de 10 anos.
"Daqui a dez anos o pa�s pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar 10% mais rico por conta desse tipo de mudan�a", diz. A seguir, a entrevista.
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Folha - Quais s�o os principais problemas fiscais atualmente?
Bernard Appy - O primeiro � o PIS/Cofins. Hoje h� um regime que mistura um sistema n�o cumulativo com um sistema cumulativo.
As empresas que est�o no sistema cumulativo cobram um percentual sobre o faturamento, que � 3% de Cofins e 0,65% de PIS, e n�o t�m cr�dito. As empresas que est�o no regime n�o cumulativo t�m um d�bito de imposto de 9,25% e um cr�dito de 9,25% de tudo o que elas compram.
Mas h� uma s�rie de restri��es sobre o que pode gerar cr�dito para as empresas. Pelo sistema brasileiro s� gera cr�dito o que � incorporado fisicamente � produ��o f�sica, e isso abre uma enorme discuss�o entre as empresas e o fisco sobre o que foi ou n�o incorporado � produ��o.
O que seria algo n�o incorporado?
Vou dar um exemplo. Todo o gasto de telecomunica��es de uma empresa industrial n�o gera cr�dito. � como se isso n�o fosse custo de produ��o para a empresa, s� porque n�o foi incorporado fisicamente ao produto.
O mesmo crit�rio de aproveitamento do cr�dito apenas para o que foi incorporado fisicamente ao produto vale para o ICMS. Tem Estados que n�o aceitam, por exemplo, o cr�dito relativo ao imposto da eletricidade gasta no escrit�rio, s� d�o cr�dito da eletricidade utilizada na f�brica.
Outro dia me disseram que um fiscal da Receita n�o queria aceitar o cr�dito da madeira comprada por uma empresa de celulose. � l�gico que a empresa vai ganhar o contencioso, inclusive na esfera administrativa, mas a pr�pria defesa da empresa tem um custo. A quest�o sobre o que gera e o que n�o gera cr�dito de ICMS e de PIS e Cofins � hoje um dos grandes pontos de contencioso entre as empresas e o fisco no pa�s.
Existia algum argumento l�gico quando foi determinado isso, quando a legisla��o fez essa distin��o?
A base l�gica era evitar que se contabilizasse como despesa da empresa gastos pessoais. O fato � que, ao mesmo tempo, voc� gera com isso uma enorme complexidade, um enorme contencioso.
Algum outro pa�s relevante faz isso?
N�o, nenhum outro pa�s relevante no mundo adota este crit�rio. Al�m do contencioso, a limita��o do cr�dito de PIS/Cofins e de ICMS gera problemas de cumulatividade. Hoje, pelas normas da OMC [Organiza��o Mundial do Com�rcio], um pa�s pode desonerar completamente as exporta��es de tributos indiretos, e pode cobrar das importa��es o mesmo montante cobrado da produ��o dom�stica, para dar um tratamento igual entre o produto importado e o produto nacional.
Quando voc� tem um sistema como o do Brasil, em que uma parte do que a empresa compra n�o gera cr�dito, paga-se imposto ao longo da cadeia que n�o � desonerado da exporta��o. O pa�s fica menos competitivo. De fato, a competitividade das empresas brasileiras � duplamente prejudicada pelo regime brasileiro de limita��o dos cr�ditos: pelo efeito da cumulatividade e pelo custo gerado pela complexidade do sistema e pelos contenciosos. Ali�s, os contenciosos representam um custo n�o s� para as empresas, mas tamb�m para o governo.
De quanto?
Para as empresas, o custo com advogados e com a mobiliza��o de equipe para cuidar dos contenciosos � elevado. Para o fisco, este custo tamb�m n�o � irrelevante, pois uma boa parte dos funcion�rios das secretarias das receitas federal e estaduais e das procuradorias se dedica exclusivamente a estes contenciosos.
Outro problema que resulta da sobreposi��o do regime cumulativo e n�o cumulativo do PIS/Cofins � a cria��o de distor��es competitivas entre as pr�prias empresas. Dependendo da estrutura de custos do setor, pode ser mais vantajoso ter como fornecedor uma empresa de lucro presumido (regime cumulativo) ou lucro real (n�o cumulativo).
Neste caso, est� sendo gerada uma distor��o competitiva entre as empresas em fun��o do modelo tribut�rio, sem que isso gere nenhum benef�cio econ�mico. Eu n�o contrato o fornecedor que � mais eficiente, que opera com menor custo, mas sim aquele que, em fun��o da tributa��o, tem o menor pre�o.
Mas d� pra eliminar a cumulatividade do PIS e Cofins?
D�. Segundo a imprensa, o governo est� estudando migrar todo o PIS/Cofins para o regime n�o cumulativo e acabar com as restri��es ao cr�dito. Acho que a elimina��o da cumulatividade � extremamente positiva, mas � preciso fazer uma transi��o bem feita, que minimize resist�ncias e n�o gere distor��es. Essa � uma daquelas mudan�as que d� diferen�a no PIB potencial do pa�s.
De quanto?
� daquelas sobre as quais � poss�vel dizer: 'o pa�s vai crescer 0,5% a mais por ano durante cinco ou dez anos'.
S� na mudan�a do PIS/Cofins?
S� na mudan�a do PIS/Cofins. Essa � uma daquelas mudan�as que faz diferen�a no PIB do pa�s. A dificuldade � que a mudan�a na tributa��o gera uma redistribui��o da carga tribut�ria. H� uma composi��o entre setores eventualmente perdedores e setores ganhadores.
O setor de servi�os, por exemplo, est� hoje quase todo no regime n�o cumulativo, que tem al�quota mais baixa, e pode se posicionar contra a mudan�a se a transi��o n�o for bem feita.
Desse ponto de vista, acho que, na transi��o, para minimizar as resist�ncias e os impactos da mudan�a, pode-se considerar manter o regime cumulativo para os setores que est�o na ponta, no varejo. A forma de tributa��o na venda ao consumidor final n�o faz muita diferen�a, pois n�o afeta a competitividade dos produtos nacionais.
Uma medida destas certamente contribuiria para reduzir uma eventual resist�ncia do setor de servi�os e do com�rcio. Em todo caso, seria preciso conhecer os detalhes da proposta do governo para fazer uma avalia��o mais precisa do modelo que est� sendo proposto.
Quais poderiam ser as armadilhas da proposta?
O fundamental � ter uma transi��o bem feita. Eu vou dar um exemplo: minha empresa, que est� no regime de lucro presumido, presta servi�os de consultoria para empresas industriais. N�s apuramos PIS/Cofins pelo regime cumulativo, e n�o geramos cr�dito para o cliente, porque o servi�o de consultoria n�o � incorporado fisicamente � produ��o.
Com a mudan�a, os servi�os prestados pela minha empresa v�o passar a gerar cr�dito. Pode at� ser que a al�quota fique mais elevada. Mas como vamos passar a gerar cr�dito integral, com certeza a carga tribut�ria dos nossos clientes vai diminuir, pois hoje eles n�o t�m direito a qualquer cr�dito.
Se a transi��o for suficientemente longa, ent�o teremos tempo de negociar os pre�os como nossos clientes de forma a que tanto minha empresa quanto o cliente sejam beneficiados com a mudan�a, ou, pelo menos, de forma a que ningu�m seja prejudicado. Se n�o houver este per�odo de negocia��o, ent�o o cliente ser� beneficiado, mas minha empresa pode ser prejudicada por uma carga tribut�ria mais alta.
Voc� acha que o governo ent�o deveria dizer para a sociedade o que � que � a proposta dele, apresentar antes?
O debate pr�vio � importante, mas � preciso cuidado para n�o criar um impasse. Quer dizer, as mudan�as s�o muito positivas, mas � poss�vel que haja setores que fiquem contra, mesmo que n�o haja aumento da carga tribut�ria total. A discuss�o preliminar � positiva, mas � importante que haja um momento em que o debate seja encerrado, e que o governo de fato se empenhe na implanta��o da medida.
Mas voc� acha que o governo n�o coloca o debate para evitar impasse?
N�o. Acho que est�o esperando o momento certo de iniciar o debate e fazer a mudan�a.
Quando fala transi��o, fala-se em implantar a reforma de forma progressiva ou dar um tempo at� que seja implementada?
Acho que os dois. Acho que � importante o debate pr�vio e a implanta��o de forma progressiva. Tem v�rias formas de fazer.
Pela sua experi�ncia no governo, o quanto essa press�o dos perdedores pode atrapalhar?
Essa � uma discuss�o que pode atrapalhar no Congresso. Para minimizar a resist�ncia no Congresso, � essencial que se entenda o grande benef�cio para a economia do pa�s que resulta da medida, para tentar minimizar a press�o de eventuais perdedores.
A recente mudan�a da caderneta de poupan�a � um bom exemplo. Todo o tempo em que eu estive no governo ouvi dizer que era politicamente imposs�vel mudar a poupan�a. A mudan�a foi feita e praticamente n�o gerou turbul�ncia pol�tica. Todo mundo entendeu que era necess�rio mudar para poder baixar a taxa de juros no pa�s. A coragem que o governo teve em enfrentar a quest�o mostrou que o problema pol�tico era muito menor do que se imaginava.
Agora pelo que voc� elencou de perdedores, ao que parece, o vencedor seria a ind�stria?
O vencedor � a ind�stria do ponto de vista da competitividade. A ind�stria, principalmente a ind�stria exportadora, vai reduzir a carga tribut�ria acumulada na cadeia. E mesmo a ind�stria voltada para o mercado dom�stico, � medida que se aproprie de cr�ditos de que hoje n�o se apropria, vai se tornar mais competitiva em rela��o ao produto importado. Ent�o eu acho que, diretamente, a ind�stria � a maior beneficiada. Agora, indiretamente, � o pa�s como um todo.
Por causa desse efeito no crescimento da economia?
Porque a mudan�a gera um efeito positivo sobre a produtividade, al�m de reduzir custos. Isso tem um efeito positivo sobre a economia como um todo.
E tamb�m o setor de servi�os que fornece para a ind�stria n�o perde nada.
Se a transi��o for bem feita, o setor de servi�o que est� no meio da cadeia, que � fornecedor da ind�stria, n�o perde nada. Ao contr�rio, ele pode at� ganhar, como procurei mostrar com o exemplo da minha empresa.
Por que a al�quota m�dia pode acabar caindo na negocia��o, como voc� exemplificou?
Porque hoje a empresa de servi�os paga PIS e Cofins e n�o gera cr�dito. Ela vai passar a gerar cr�dito. Mesmo que a al�quota fique maior, ela vai passar a gerar cr�dito integral, e a carga total paga pela empresa de servi�os e pela empresa que contrata os servi�os ficar� menor. Na verdade, al�m da ind�stria, o setor de servi�os que est� no meio da cadeia com certeza � outro grande ganhador com a mudan�a.
Agora isso j� seria um trabalho grande, uma mudan�a complexa. Por que n�o implantar o IVA federal de uma vez e simplificar todos os impostos federais em um �nico, j� que vai mudar?
Era a proposta da reforma tribut�ria de 2008, na qual se propunha a incorpora��o do PIS e Cofins pelo IVA federal.
Por que n�o foi at� o final?
O problema � que as contribui��es sociais, como � o caso do PIS/Cofins, t�m uma vincula��o espec�fica � seguridade social, que � previd�ncia, assist�ncia e sa�de, e os impostos, como o IVA federal, n�o. Na proposta, uma parcela do IVA federal e dos demais impostos federais seria destinada � seguridade, mas mesmo assim houve uma enorme resist�ncia, do meu ponto de vista totalmente infundada, da �rea de seguridade social.
Por qu�?
O argumento do setor � que � importante ter receitas vinculadas exclusivamente � seguridade, mas, do meu ponto de vista, este � um argumento infundado, pois a vincula��o na pr�tica n�o elevou as despesas da seguridade.
As despesas de sa�de hoje est�o protegidas pela emenda constitucional 29, que determina que a cada ano deve ser aplicado em sa�de o que foi alocado no ano anterior, corrigido pelo PIB. Ou seja, as despesas com sa�de n�o dependem da vincula��o de receitas.
As despesas da previd�ncia dependem das regras para a concess�o de benef�cios e n�o da vincula��o de receitas. E a assist�ncia nunca se beneficiou da vincula��o. Vou dar s� um exemplo: na �poca que tinha CPMF, uma parcela da contribui��o, se eu n�o me engano 0,08% dos 0,38%, era vinculada ao fundo de combate e erradica��o da pobreza.
Antes do Bolsa Fam�lia, sobrava dinheiro no fundo de combate � pobreza, que n�o era gasto e gerava super�vit prim�rio. Depois, quando acabou a CPMF, o gasto com o Bolsa Fam�lia cresceu independentemente de ter ou n�o ter vincula��o de receita. Ent�o, o que acontece de fato, � que a vincula��o de receita n�o garante que voc� vai de fato fazer aquelas despesas.
A reforma do ICMS implica redu��o de carga tribut�ria?
N�o. Esse � um ponto interessante. � o contr�rio: o fim da guerra fiscal resulta em aumento da carga tribut�ria. Porque hoje voc� deixa de arrecadar R$ 30 bilh�es em fun��o de ren�ncia fiscal.
Portanto, eu acho que faz sentido que essa discuss�o de fim de guerra fiscal venha junto com uma discuss�o, por exemplo, de como permitir que todas as aquisi��es das empresas gerem cr�dito no ICMS, como o governo est� propondo para o PIS/Cofins. Isso j� absorveria uma boa parte do impacto do aumento da carga tribut�ria que viria do fim da guerra fiscal do ICMS.
E qual seria o impacto na economia?
Se toda a agenda do PIS/Cofins e do ICMS for implementada --e tamb�m a desonera��o mais ampla da folha de pagamentos-- o impacto estimado seria de em dez anos poder crescer algo como 1% a mais ao ano. � uma mudan�a relevante.
Daqui a dez anos o pa�s pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar 10% mais rico por conta dessas mudan�as. Agora o benef�cio � difuso. � muito engra�ado porque as pessoas n�o conseguem entender isso quando avaliam as mudan�as das quais estamos falando. Esse tipo de benef�cio, que se reflete em maior efici�ncia da economia, ningu�m consegue perceber como sendo seu benef�cio. Mas ele existe. Existe e � relevante.
Por Mariana Carneiro e Ana Estela de Sousa Pinto - Folha.com